terça-feira, maio 15, 2007

Madrugada VermelhaMadrugada Vermelha

O mundo novo que conhecera na Colômbia fora mais que uma simples expedição, a fragilidade da vida humana foi por demais evidente. Agora, quase um ano corrido, o suor e a dor desvaneciam-se com as memórias desses momentos, mas algo de abrupto me tinha acontecido.
Assim que o cruzeiro atracou na costa Colombiana começou ali um longo calvário. Não mais tomei contacto com a minha antiga existência, fora arrancado da liberdade por agentes federais naquele mesmo porto e mais tarde arrastado para uma cela minúscula durante três dias. Não estava sozinho nesta etapa da minha vida, a Patrícia partilhava a cela com a Mara e Emiliana e eu estava com os meus amigos.
Os guardas colombianos abandonaram o caso, tinham chegado dois tipos à esquadra para falarem comigo e com a Patrícia. Bem vestidos e penteados pela mãe, apresentaram-se como elementos do governo português e que estariam ali para tratarem da nossa situação. Não chegámos a passar nova noite naquela esquadra, fomos recambiados para o Consulado de Portugal, onde certamente seria deportado para o controle das forças portuguesas. Não sabia do que era propriamente acusado, a minha culpa era a cumplicidade com a Patrícia, estava destinado a provar da sua sorte.
Os detalhes da minha captura eram demasiado vagos, relacionavam a minha presença na Colômbia com as mortes na ilha das estátuas em terracota. Não haviam provas, nem testemunhas vivas do que realmente se havia passado naquele lugar remoto, os argumentos que serviam de acusação pareciam mais desculpas para uma detenção forçada.
A noite passada no Consulado foi agradável, após horas de interrogatórios durante aqueles dias. Os dois homens vestidos de preto jantaram connosco no salão da majestosa mansão, na presença do cônsul. O jantar foi longo, Patrícia estava impaciente, olhava constantemente em seu redor, suspeito que tentaria descobrir uma brecha na segurança e fugir como bem se habituara. Eu não tinha essa confiança e tentava desfrutar calmamente da primeira refeição decente desde que saí de Portugal. O assunto da nossa captura surgiu no fim do banquete, estávamos a ser demasiado bem tratados para simples marginais apanhados na América Latina, os dois tipos estavam ali para nos libertarem das garras da justiça colombiana, mas essa liberdade teria um preço. A Mara e a Emiliana, tal como os rapazes, subiram aos quartos, foi então que se prosseguiu a conversa e veio a lume o verdadeiro motivo da nossa deslocação para ali. Cada um deles trazia todo o nosso processo de vida, toda a documentação que se possa imaginar existir sobre uma pessoa, os seus hábitos, algumas fotografias, os seus relacionamentos... tudo, tudo estava arquivado numa simples pasta que cada um deles religiosamente guardava. Não seria possível que fossem simples funcionários públicos do nosso governo, ninguém anda na rua com a vida inteira de outra pessoa, muito menos se daria ao trabalho de viajar dez horas de avião para tirarem alguém de uma modesta prisão. Um deles, o que abriu o meu processo, apresentou-se na prisão como Carlos Mendes, não tinha forma de comprovar se era realmente esse o seu nome, mas também pouca diferença faria. Falou durante alguns minutos e nada me pareceu com nexo, estava a escutar palavras que na minha cabeça não faziam qualquer sentido, uma conversa demasiado formal, pouco conteúdo... no entanto, eles pareciam saber tudo sobre nós, nós nada deles.
João, estes gajos são do SIS. Pensavas que eram anjos da guarda?
Acorda.
– recordo-me claramente da Patrícia me alertar.
Questionava-me na altura que fariam agentes do Serviço de Informações de Segurança , apesar do seu raio de acção ser bastante alargado, estranhamente equacionava ter algo a ver comigo.
Eles não continuaram com os rodeios, foram directos ao assunto e isso seria então algo que estaria interessado em ouvir. Foi-nos apresentada uma proposta, no entender deles, algo simples e que evitaria uma prisão prolongada em solo estrangeiro. As acusações contra nós seriam todas retiradas, os nossos amigos voltariam em segurança para Portugal e tudo não passaria de uma triste memória. O que nos ofereciam era um contrato de servidão institucional, seriamos remunerados, treinados e colocados meses mais tarde em liberdade operacional, como se estivéssemos a ser recrutados para algo que pudesse acontecer. Os traços dessa liberdade não seriam ali discutidos, era uma proposta que me parecia oca, tão vaga em explicações, tão abrangente a aspectos obscuros e uma porta aberta para um mundo desconhecido que seriamos forçados a viver.
Não tive grande escolha, apesar de estar a assinar, o que me parecia, um contrato em branco, o revés da medalha era satisfatório, pelo menos viveria longe de uma prisão imunda.
A assinatura naquele papel que mudaria a minha vida, levou com ela a minha liberdade mental, foi o momento que cortei com todos os meus laços emocionais. Entreguei todos os meus objectos pessoais àqueles homens, não me despedi dos meus amigos e nessa mesma noite, eu e a Patrícia, fomos levados para um Aeroporto militar.
Não chegámos a pisar solo português, da América do Sul voámos para o norte de África num avião particular, nada fazia sentido, tudo parecia um longo pesadelo sem fim anunciado ou beliscão que me acordasse.
Cheguei encarapuçado ao nosso último destino, estava assim desde que naquele país aterrei. Tinha chegado ao local que chamaria de casa durante os próximos dez meses, o meu Universo ficava reduzido a um posto de campanha em pleno deserto, um antigo forte de batalha utilizado pela Legião Estrangeira. Os legionários há muito que abandonaram aquelas ruínas, algo mais sofisticado tinha dado lugar onde outrora foram travadas batalhas de espada em punho. Não se avistavam os fatos cremes e os chapéus de banda, homens vestidos com fatos pretos tinham tomado os seus lugares, as débeis paredes pedregosas sobre as areias do deserto serviam apenas de fachada, o forte real eram bem abaixo da superfície, levando mais de um minuto de elevador a alcançar.
Exausto da longa viagem, escutava a voz da Patrícia a meu lado, como se esticasse o braço e conseguisse tocar-lhe. Mal conseguia abrir os olhos, a luz forte sobre nós ofuscava e o cansaço apoderava-se do discernimento. Patrícia estava diferente, parecia assustada, as suas palavras de desagrado, horas antes, tinham dado lugar a uma estranha expressão de medo no seu rosto, como se tivesse visto um fantasma.
Que se passa? – perguntei-lhe.
Nada respondeu, continuou a olhar fixamente na direcção de um homem ao canto da sala, um sujeito com aspecto sinistro que remexia numa rasurada folha de papel vezes sem conta.
Começava ali a segunda parte do nosso compromisso, após a aceitação dos termos em branco impostos e passado carta branca das nossas vidas, seria naquele momento que se iniciava o nosso treino. Foram tempos difíceis, uma realidade para a qual não estava minimamente preparado. Estava longe de quem gostava, seria sempre com algum sofrimento que recordava aqueles meses de isolamento, são lágrimas que choro em silêncio. Acabava-se a merda da história do mundo girar, sempre o fez, não precisa que alguém o repetisse constantemente em tudo o que é frase. Sempre continuará... Mas para mim deixara de o fazer, a minha vida era uma sombra do que um dia foi, a minha mente era reciclada para uma nova ideologia, o meu corpo era moldado para um novo ser. No entanto, há coisas que nunca mudam, a criação da vida, o estilo das coisas, o jeito de viver e para muitos a maneira de amar. Fechava-se um velho ciclo sob as areias daquele deserto, o mundo continuava certamente a girar, para alguns. Tenta-se recolher pequenos pedaços de nós desfeitos no exausto e ardido antro da livre e desmedida entrega da nossa existência aos caprichos de alguém, o mundo continua a girar. Nos duros e prolongados meses, reconfortava-me com lembranças de quem em outros lados deixei, consegue-se levantar um pouco o animo para mais tarde se cair em desalento, continua a girar, sofre-se cá dentro, e este não pára.
Foram os piores meses da minha vida, os mais cansativos fisicamente, desastrosos a nível emocional, no entanto estimulantes. O calvário tinha chegado ao fim, foi uma experiência de vida que não repetiria, mas um ensinamento bem estruturado para o resto de uma vida.

Voava para Portugal, imaginando o mar, sentado num assento de avião. Lembrando-me das areias quentes de um Verão tropical, olhei para lá do horizonte e recordava a casa deixada para trás. Retrocedo dez meses, a água batia no casco de um barco, o mar estava bravio, duas caras amigas me acompanhavam, tantas outras me olhavam. Tudo escureceu, foi assim há dez meses, não sei como foi possível deixar tudo o que sucedeu acontecer.
O olhar de menino extinguia-se velozmente nesta chegada e com nova percepção a este mundo exterior retornava, nascia para a sociedade um ser de sentimentos temperados pelo calor do deserto africano e pelas mentes dementes que o impulsionaram a cortar com a afectividade e delicadeza de expressão. Era agora uma alma perdida num mar de esquecidos. O tempo passou, deixou-nos mazelas, os corpos doridos, os sentimentos feridos.
Chegava finalmente a casa, o trajecto do aeroporto tinha sido recordado com nostalgia, alguma felicidade por novamente ver tais paisagens. O Sol pairava sobre a cabeça, era diferente do que à força me habituara, tão distante como o outro, a este reconhecia os traços e quereria ver nascer num novo dia.
Era manhã de Sábado, batia levemente na porta após um ano em cativeiro, não tinha avisado ninguém que iria regressar a casa. A minha mãe abriu a porta, chorava e apalpava-me o rosto, tentava reconhecer os traços de menino no seu filho, estavam tapados por uma barba de desleixo, o cabelo despenteado e um sentimento de frieza que não me era habitual. Não verti uma lágrima, um sentimento, uma saudade sequer.
Durante este ano de ausência, mantivera os meus pais na sombra, tinha sido forçado durante o cativeiro a inventar constantes mentiras, das quais eles se encarregavam de fazer atravessar o Mediterrâneo, para lhes despistar a curiosidade pelos sítios onde supostamente vagueava e as suas crescentes preocupações. Num dia bebia café num barco sobre as gélidas águas do Senna, na semana seguinte fugia até à praça das estátuas em Praga ou perdia-me num dos muitos bares de Amsterdão. Nas suas mentes e dos que me rodeavam, eu estava numas emocionantes e demoradas expedições pela Europa, a trabalho, sem data de regresso. Essa era outro ponto que fora deixado ao cuidado de quem me acolhia, estava oficialmente empregado como consultor na Fundação Nacional de Belas Artes, um nome de fachada para outros tantos funcionários que por aquele forte em solo africano haviam passado e agora vagueavam inertes por esse mundo fora.
Cedo me habituara às mentiras, com o passar das semanas, a necessidade de enganar estava enraizada na minha maneira de agir, surgia naturalmente como se uma parte de mim não mais quisesse regressar àquele antigo mundo.
Passei uma semana a tentar restabelecer-me ao passado desligado, custava mais do que alguma vez pudesse imaginar, agora que estava diante do reencontro com antigos laços criados, a minha mente dava a cada detalhe uma importância diferente, a cada pessoa um significado menor. Indiferente a esses desejos e lembranças de outrora, haviam inúmeros pontos que teria de tomar em consideração para que a minha reinserção pudesse ser concluída.
Encontrei-me com a Mara e Emiliana numa esplanada junto ao Tejo, adivinhava-se uma bela tarde de Sol. Estavam surpresas por me verem e desagradas por nada lhes dizer durante quase um ano sem ser apenas um vago telefonema naquela manhã. Elas e os rapazes tinham voltado para Portugal num voo comercial na tarde seguinte à minha partida da Colômbia, foram bem tratados como prometido e, oficialmente, a sua triste passagem por aquele país não passava duma atribulada lembrança turística. Quiserem saber tudo, o que me acontecera, por onde tinha andado, que contasse o que em verdade nunca lhes poderia contar. O novo emprego improvisado como consultor serviu para a ocasião, alguma ostentação da minha parte no carro e fato vistoso enquadravam-se perfeitamente na personagem que me haviam criado e àquelas preciosidades havia mostrado. Fizemos um pacto, nada do que foi vivido naquele pais sairia de lá, ficaria para sempre esquecido nas nossas mentes.
Connosco à mesa juntou-se a Débora, o seu rosto belo inalterado e o corpo bem delineado eram momentos do passado que recordava com satisfação e neste presente de reflexão eram alicerces sólidos para uma melhor reunião com o que em tempos numa vida toda deixei. Estava bonita como sempre, ela que outrora em mim por caminhos escuros vagueou, em sítios não seguros me tocou, algumas das minhas loucuras escutou, algumas das minhas ternuras provou. A sua falta foi notada durante os meses de cativeiro, era agora sentida.
De tudo e de nada se conversou, a tarde passou em passo acelerado. Fiquei de me encontrar com a Mara na manhã seguinte, segundo ela, tínhamos compras. Aceitei a custo, uma manhã passada entre lojas não seria o que mais poderia desejar, mas para compensar a longa ausência acedi ao seu pedido. As marcações em agenda não se ficavam por ali, tinha combinado com a Débora uma saída para aquela noite. Não tinha ainda frequentado qualquer dos locais onde antigamente tanto do meu tempo perdia e naquelas noites parte da minha existência vivia. Estava a dar os primeiros passos numa aproximação ao que em tempos foi de facto a minha vida, encontrara-me com algumas das pessoas que queria e a algum sítio bonito naquela noite certamente iria.
O que parecia um filme perfeito deixava subitamente de o parecer. Recebi uma mensagem no telemóvel dado pela Fundação, curta e discreta.
Doca de Alcântara – Armazém H – 2300.
Tinha sido solto no mundo real com um objectivo, sabia que a minha sofrida liberdade teria um preço, era então que o momento de o começar a pagar chegava. Na verdade aquele local fazia parte da minha anterior existência, mais uma casa junto ao Tejo que bem conhecia, não era mais que o Blues Café nas Docas. Talvez a Patrícia também aparecesse, ela tinha sido libertada antes de mim e soube que estaria em Portugal.
Deixei a minha amiga em casa, com a promessa que mais tarde ali passaria para a buscar. O nosso destino para aquela noite estava involuntariamente traçado, o tempo de intervalo seria curto.
A hora marcada aproximava-se, os bares começavam a ganhar vida, os carros amontoavam-se nos locais públicos. Era uma correria de pessoas que não estava acostumado, fugiam dos seus carros para uma noite que os acolhia, nada em troca pedia, um mundo novo de emoções lhes oferecia. Cheguei acompanhado para uma ocasião que exigiu uma presença de mim sozinho, sem estar preocupado, peguei com leveza pela mão da minha amiga e estava na hora de encarar o que atrás daquela mensagem trazia.
Aprumei o colarinho do smoking e dirigi-me para a porta. Os seguranças nada disseram, afastaram-se da porta e era uma nova realidade que se abria naquela noite para mim. O som atrás das cortinas estava ainda no seu início, o bar estava aberto e as primeiras bebidas já tinham sido pedidas. A pouca afluência sentida naquela hora redecorava o Blues como um calmo e relaxante local de lazer, longe de loucura e excitação que se adivinhava para as horas seguintes. Todas as caras eram marcadas, novos hábitos forçosamente ensinados tomavam conta dos meus sentidos, as janelas eram contadas, as portas estudadas. Um novo ser adormecido em mim estava a ser despertado com uma simples evidência que algo se passaria naquela noite depois das onze.
Contava poucos minutos para a hora marcada, recebi uma nova mensagem no telemóvel.
WC dos Homens, vem sozinho.
Dou um último gole na bebida, passo a mão pelo cabelo da doce Débora e ausento-me do bar. Encaminho-me para a casa de banho, passei as cortinas e sou abordado por uma cara conhecida. As apresentações eram escusadas, Carlos Mendes era o mesmo agente que me havia tirado da Colômbia e por meia dúzia visitou-me no forte em África para se inteirar da minha evolução. Tinha sido atraído àquele local, fomos para a cave da discoteca, eram passos dados no desconhecido, de todos os locais que ali pisara dentro, aquele nunca fora sequer imaginado. A música calara-se, as vozes na entrada deram lugar a um silêncio comprometedor, um misto de medo e excitação, não sabia o que me esperava por detrás da porta que agora se abria. Tinha sido levado a uma sala, as luzes estavam acesas e outra cara conhecida estava no seu interior. A Patrícia sempre tinha comparecido, não a via desde a estadia na Argélia e não tinha havido qualquer tentativo de um contactar o outro desde que de lá tínhamos saído, apesar disso, senti-me um pouco mais confortável. Estava um outro tipo na sala, bem vestido e engravatado, abria vagarosamente uma pasta sobre a mesa de reuniões. Não havia sofás naquela sala, como em tantas outras de discotecas. Esta era mais séria, as luzes claras e um computador portátil sobre a mesa davam um ar mais sóbrio.
Esta era a primeira chamada ao activo desde a conclusão do treino, estava ansioso, sem saber o que dali esperar e mil e uma coisas imaginar. A reunião prosseguiu, o ecrã do portátil servia de modo para a apresentação do que se assemelharia a uma missão, a minha primeira. Foram apresentadas oito fotografias, incluindo entre elas duas caras que não me eram nada estranhas, Patrícia parecia conhecê-los a todos. Senti um ligeiro arrepio pelo corpo, duas daquelas caras não só me eram familiares como as conhecia bem, eram os falecidos Heitor e Miguel, da antiga Agência da Patrícia. Os restantes pertenceriam supostamente à restante célula, da qual a Patrícia fez parte em tempos, e que agora estava novamente activa. O tipo todo engravatado afastava-se do teclado e Carlos Mendes passava a apresentar os objectivos que dali esperava ver cumpridos, sem entrar em grandes detalhes, exibindo e falando apenas do estritamente necessário. A minha mente assimilava aquelas palavras de uma forma que não estava habituada, parecia que a minha consciência tinha ficado junto ao bar a beber um copo com a Débora e o meu corpo robotizado ali estivesse a escutar cada ordem dada.
A missão não seria propriamente algo que me viesse a orgulhar de cumprir, os objectivos eram claros, todos aqueles nomes teriam de pertencer futuramente a um simples obituário de jornal, sem que volta ou alternativa pudesse ser dada. Estavam em causa assuntos de segurança nacional, dizia o outro tipo engravatado que nada durante toda a apresentação disse. Para mim nada disso fazia sentido, muito menos me interessava, mas notava que algo dentro de mim queria completar aquelas tarefas, como se aqueles alvos estivessem já executados por vontade. Não sabia que se passava comigo, era um sentimento ambíguo, teria a consciência fragilizada ou seria fruto das drogas dadas durante treino no deserto causadoras de uma nova mentalidade moldada ao capricho de assassinos frios e calculistas. A Patrícia teria de me auxiliar, a localização e manipulação dos alvos ficaria por sua conta e risco, dada a sua anterior ligação, apesar de momentaneamente ténue, com todos os nomes sorteados naquela noite.
Não poderia nem queria comprometer a missão, sob pena de ao falhar estar a atentar contra a minha própria vida ou dos que me rodeiam, essas coisas fariam muito mais sentido agora, no momento de todas as incertezas para se levar a cabo algo macabro e descabido de uma antiga vivência livre dessa dor.
A reunião não terminava sem uma última nota, Carlos mostrava-me pela última vez naquela noite uma fotografia, era um dos alvos, Cristina Vieira. Estaria presente naquela noite no Blues Café, arrastada para aquele lugar que agora me parecia sombrio por um telefonema da Patrícia. O modo da sua morte estava preparado, Patrícia começaria o trabalho sujo, eu só teria de assegurar que o plano não fosse alterado. Não havia mesmo volta a dar, a missão tinha sido iniciada e cabia-me levar a cabo dali para diante. Fui acompanhado pela Patrícia para o centro da pista, agora mais composta. A Débora desesperava junto ao bar, a sua expressão era menos sorridente, estava chateada comigo por a fazer esperar durante dez minutos sem uma explicação. Teria de a compensar e com a vida de outra pessoa terminar, esperava-se uma noite atarefada e não sabia por qual das missões começar.
Patrícia tinha-se misturado com a multidão que ia compondo cada lugar vago na discoteca, esperava o nosso primeiro alvo. Não dispunha de qualquer arma evidente, o local não era propriamente isolado, milhares de olhares serviam de audiência a uma execução não por mim programada. As novas sensações que ia descobrindo não me eram familiares, o medo tinha ficado à porta daquela sala na cave, as incertezas deixadas junto de um portátil e uma nova postura era agora saliente na minha presença.
Débora levou-me para dançar, foi então que vi a Patrícia acompanhada pela rapariga que momentos antes fazia capa de revista na secção dos alvos que já deveriam estar mortos e enterrados. Patrícia estava sem dúvida a fazer o seu trabalho, apesar se friamente conduzir outra pessoa a um passo da sua morte, encarregava-se também de a fazer esquecer com cada último momento da sua curta restante experiência de vida, adulterando-lhe a bebida com cocaína.
O tempo ia passando, a minha hora de entrar em acção não estaria muito longe, dei duas passagens pela casa de banho, continuavam as duas junto ao bar aquecendo os seus corpos com licores, pareciam estar a colocar a conversa e a bebida em dia.
Estávamos naquela discoteca há mais de três horas, aproveitei uma ida da Débora à casa de banho, e dirigi-me na direcção das duas velhas conhecidas, de copo em mão. Apresentei-me como qualquer anormal faria numa discoteca daquelas, ofereci-me para pagar uma bebida às meninas e estava lançado o primeiro passo na construção de uma destruição naquela noite. Patrícia fazia o seu papel, mostrava-se disponível e cooperava discretamente, arrastava a jovem Cristina para uma sorte doentia. Avistei ao longe a Débora procurando por mim, talvez tivesse sido má ideia tê-la trazido comigo, não haveria como alterar isso. Patrícia sussurrava-me ao ouvido, Cristina parecia eufórica, o efeito da mistura estava a fazer efeito. O passo seguinte seria levá-la para fora dali e em qualquer outro lugar concluir o desfecho anunciado. Decidi dar mais uma volta pela discoteca, deixei o copo meio cheio pelo chão e fui ao bar buscar duas bebidas. Dancei um pouco mais com a Débora, a postura fria era abalada por uma ligeira sensação no estômago, um aperto no vazio que não sabia explicar. Abandonei uma vez mais a bela acompanhante naquela pista, fui a correr para a casa de banho, o bacardi misturado com toda aquela adrenalina deu-me a volta à barriga. Os estragos pareciam grandes, tinha as tripas em alvoroço. Permaneci fechado dentro daquelas quatro paredes aromatizadas com toda a essência de uma noite ao ar livre. Os ponteiros do relógio avançavam, não estava com vontade nenhuma de me levantar da sanita, parecia confortável e um óptimo local para passar um serão. Senti-me adormecer, os olhos pesavam, as mãos estavam caídas pelos joelhos, a cabeça tombava sem direcção. Não senti despertar, mas acordava certamente. De olhos abertos e movimentos revitalizados, vagueava em pleno deserto africano, completamente exausto e desidratado. Aninhava os meus pés na areia, estava quente, escutava um mar imaginário a poucos passos de mim e avistava uma miragem, por entre a neblina, uma fonte ao longe no areal. Caminhei até lá, a fonte secara e criara um lago, não tinha peixes, nem folhas ou pedrinhas, a sua água era um espelho vazio e nele via quem era, nada surgia, o menino de outros tempos deixara de existir. Pensei que enlouquecera, onde estava a confortável sanita de há instantes atrás, ou o cheiro desagradável do que expressava cá para fora... Estavam mesmo ali, o barulho da música voltava, os pés calçados contorciam-se nos sapatos. Corri para fora daquele pequeno tormento, foi então que tive enfrentar o meu desafio. Cristina atravessava as cortinas, descia para uma das casas de banho, vinha em pouco desequilibrada e gotas de suor escorriam pela sua face, tinha as capacidades cognitivas afectadas, e facilmente se deixou levar nos meus braços para a porta da casa de banho das senhoras. Beijei os seus lábios, ela tentava retribuir o beijo e o seu corpo subia um pouco mais de temperatura. Esperei que a última rapariga saísse de lá, sem ninguém mais a servir de audiência, entrei com a Cristina num cubículo livre, servia perfeitamente. Pedi-lhe que trancasse o fecho da pequena porta, os seus lábios estavam desidratados, a sua respiração era demasiado ofegante e o seu coração parecia estar a entrar em arritmia cardíaca. Não precisei de qualquer esforço para que a vida daquela jovem terminasse, a droga faria o resto do trabalho sujo e limitei-me a levar o seu corpo ao limite do seu esforço. A minha mão descia para dentro da sua saia, estimulava a pobre Cristina no que seria a sua última corria para um último fôlego. A sua excitação aumentava em flecha, o calor do seu corpo tornava-se em vapor e foi então que os espasmos começaram, as dificuldades respiratórias seguiram-se e o seu coração finalmente parou.
Esperei que a casa de banho voltasse a ficar vazia, a porta do cubículo permaneceria trancada por dentro, coloquei o casado do fato por cima da divisória e saltei sem deixar qualquer rasto da minha presença naquele local mal afortunado.
Fui para a festa como se nada mais que uma dor de barriga me tivesse importunado, Débora continuava a dançar na pista e a Patrícia encaminhava-se para a saída. O trabalho para a minha noite estava concluído, não sabia o que sentir ou pensar, era o vazio que me ocupava a mente naquele momento, peguei na Débora e saímos também.
Dali até chegar minha casa foi num instante, deixei primeiro a minha fiel acompanhante em casa, sem beijo ou afecto forçado, o calor do meu corpo tinha-me abandonado no momento que a Cristina se desligou deste mundo.
A frieza de ocasião transformou o resto da noite numa eternidade difícil de atravessar. Algumas memórias recentes assolavam-me a passividade de um sono madrugador. Não ficara indiferente ao que se passara, àquela vida prematuramente ceifada. Com a elevada dose de adrenalina que me correu pelas veias, não tive tempo para pensar naquele alvo como pessoa, como sendo a filha de alguém. Era simplesmente um nome assinalado numa folha de instruções. Não sentia remorsos, sequer pena pela dor infligida. O que estava feito não poderia ser desfeito, mas sentia pela primeira vez que talvez todo aquele esforço tivesse sido em vão, como se a situação não justificasse necessariamente aquele desfecho, frio e sombrio.
Faltavam cinco nomes a serem eliminados, após a morte de mais um deles depois do Heitor e o seu irmão Miguel, certamente iriam desconfiar desta recente morte e que algo de anormal poderia estar a acontecer no seio da sua organização. Não pensava neles como cinco pessoas que teria de eliminar, mas que era imperativo despachar-me, antes que aquelas vidas me escapassem de vez.
Iria receber informações na manhã seguinte sobre as restantes pessoas abater, estava impaciente, não conseguia pregar olho com tanta ansiedade. Vesti-me à pressa, peguei nas chaves do carro e fui novamente para a rua. Conduzi pelo Barreiro, a lado nenhum fui dar, via apenas as horas passar. Estacionei o carro junto à praia, parei para escutar o mar, as coisas que ele me disse. Fiquei parado naquele cais, apenas ouvindo, foi por demais o que fui sentindo. Tinha saudades do que era, nada mais me lembrava de sentir. Após tanto tempo de ausência, há coisas que se perdem pelos momentos, outras que se aprumam e se mostram no momento.
O amanhecer pouco tardou, algumas gaivotas sobrevoavam. Não fugi desta vez, o primeiro barco da manhã ao longe navegava, eu apenas ali passeava. Soltei-me e acabei por me perder na vista por Lisboa, longe de por onde horas antes vagueava. Gostava do que então deste lado via, sonhava com o pouco que sentia, eram dos momentos de lá que me esquecia. Fiquei ali feito menino, brincava com as luzes e as cores.
Entrei por casa com os raios de Sol do novo dia, este chegava e iluminava o quarto sem pedir licença, repetia o mesmo ritual desde há uns dias, não tinha como dormir. Liguei o portátil na expectativa de receber alguma informação nova e comecei a carregar o ficheiro. O tocar da campainha fez a minha mente dispersar-se por momentos e afastar a minha ansiedade daquele ecrã de computador. Era a Mara, vinha sorridente logo pela manhã. Apanhou-me com a roupa do dia anterior ainda por despir, com tantas coisas pelo meio tinha-me esquecido do que combináramos na tarde anterior.
João, estás com um aspecto de boémio... Ainda agora acordaste e já estás assim?
Ainda era de manhã e a menina já estava com piadas parvas. Pedi-lhe que aguardasse um pouco no quarto, a casa nova que me fora atribuída estava pouco mobilada e o seu recheio resumia-se a uma cama e televisão. Tomei um duche, tentava limpar do corpo as marcas da noite anterior, não saíam, estavam escondidas onde um lavar de chuveiro nunca conseguiria apagar, bem entranhadas numa mente que se adulterava velozmente e se tornava numa sombra do que em tempos foi.
Quando regressei, a Mara deitada sobre a cama e olhava fixamente para o ecrã do computador. Com o tocar da campainha nem me lembrei que tinha colocado os dados a carregarem para o disco, uma distracção estúpida.
Conheces a minha irmã?
Penso que não, é gira? – respondi.
Ela faz anos hoje, vens comigo à festa dela.
Na verdade, não fazia a mínima ideia de quem fosse a sua irmã, de todas as vezes que saímos nunca a tínhamos convidado. Peguei no portátil, dei uma vista de olhos pelo que tinha carregado e a festa de anos da irmã da Mara teria de ficar para o próximo ano, naquela noite teria de ir a uma outra festa de aniversário, mas com uma presente diferente. Os cinco elementos, três rapazes e duas raparigas, uma delas a aniversariante, iriam estar nessa mesma noite todos reunidos num restaurante em Lisboa. A morte da Cristina Vieira ainda não tinha sido divulgada e talvez fosse a altura ideal para se arrumar este assunto de uma vez por todas.
Anda caramelo, vamos no meu carro. – apressava-me ela.
Esqueço esses assuntos por um momento, vou com a Mara às compras, afinal sempre precisava de roupa. os meus gostos tinham-se alterado, a roupa confortável e de ocasião dos tempos académicos dera lugar a tecidos caros que vestiam um indivíduo snobe e bem arranjado que não saía para a rua sem a sua adaptação a uma nova realidade estar bem definida. Os fatos Armani, os sapatos Miguel Vieira, as camisas pretas... adereços que outrora desprezava, faziam agora parte integrante da minha vida. Mara estranhava de onde tinha surgido o meu avultado poder de compra repentino.
Eram quase horas de almoço, Mara telefonou para a irmã e pediu-lhe que fosse almoçar connosco no Fórum. A jovem rapariga não tardou a chegar, de longe tinha o bom aspecto da irmã, o seu caminhar tornava-se único na minha cabeça, as pessoas em redor tornavam-se em sombras e dava mais atenção a uma expressão de menina que não me parecia totalmente desconhecida. Talvez o cabelo estivesse diferente, agora os olhos, as expressões do rosto e os seus lábios já tinham sido marcados por mim, nalgum outro lugar qualquer.
Cátia, este é o meu amigo João que te falei. – apresentava-nos a Mara.
Fiquei paralisado, a respiração alterou-se...
Cátia?! A sua semelhança incrível com alguém que detalhadamente observara e agora o nome. Disse que tinha de ir à casa de banho, afastei-me das duas jovens e longe dos seus olhares telefonei à Patrícia.
Estou? Patrícia... Porque não me disseste que a Cátia era irmã da Mara?
Ela hesitou em responder...
Não era relevante. Faz o teu trabalho.
Até logo.
– terminou, desligando a chamada.
Voltei para junto da companhia das meninas, estava menos nervoso e com a cara refrescada. A Cátia, pelo que se revelava, não era uma simples desconhecida, uma jovem bonita que via de primeira vez. O seu nome e fotografia tinham sido divulgados na noite anterior e a festa de anos à qual teria de ir nesta noite seria a dela.
Tento disfarçar o meu estado extasiado e confirmo a minha presença na sua festa para aquela noite. Mas ainda era de manhã e estava com uma fome desgraçada, tínhamos um almoço pela frente e uma oportunidade de conhecer melhor aquele que seria o mais novo membro de uma célula clandestina que supostamente ameaçava a segurança de muita gente. Nos seus recém-chegados 19 anos, mais me parecia uma rapariga de escola, parecia-me difícil que aquela doce expressão se revelasse numa mulher fria e calculista como vinha descrito no seu processo. Parecia frágil, as aparências poderiam iludir. No entanto, fiquei com dúvidas. Eram muitas, como se quisesse terminar a missão, como se tudo o que me fora impingido fosse falso e estas pessoas estivessem a morrer sem uma razão.
As palavras de outros perseguiam-me, esses tantos outros que me ditam o tempo, me controlam os segundos, me sugam os momentos. Era assim o meu viver, contando o tempo do meu ser. Soltava devaneios em silêncio, pedia ao mundo que me acalmasse. Queria desfocar as cores da fotografia que vi naquele ecrã, queria que fosse outra pessoa, queria que houvesse uma razão, queria tirar o brilho que aquele momento não teve... torná-la mais artificial, mostrando a visão que tive daquele momento, turvo na minha mente, desfocado de toda uma realidade. Mas não o conseguia, era a mesma amiga de hoje, de um curto amanhã talvez.
Mal falei durante o almoço, escutava as palavras da Cátia numa última tentativa quase desesperada de perceber o que se passava na sua cabeça e se iria levar a minha missão a cabo. O almoço foi subitamente interrompido por um telefonema, alguém dava a triste noticia à aniversariante da morte da Cristina. Ficou abalada, verteu uma lágrima.
As compras terminaram, o almoço teve o seu fim. Mara levou-me a casa.
Giro o pulso, observo a paisagem simples e descuidada de uma via rápida. Tudo gira, nenhum momento se perde para respirar, o relógio não pára, os carros não abrandam, as árvores não sossegam, as nuvens não descolam. Perguntei cinicamente à Mara quem era a tal Cristina, ao que me respondeu sem certezas, mas que se lembrava apenas dela como uma das amigas da irmã, uma colega de faculdade.
A viagem parecia nunca mais terminar, continuava a remoer no mesmo pensamento. Mara deixou-me em casa, a nova postura de frieza era abalada por um sentimento antigo, por uma necessidade de proteger aquela frágil vida. A Patrícia iria estar presente naquela festa, uma equipa de exteriores aguardaria qualquer sinal e a conclusão do plano serias levada a cabo noutra localização, longe de uma multidão de espectadores.
O jantar estava marcado para o Esqueci-me, um restaurante pequeno e bastante agradável junto ao Restelo. As cada vez mais curtas horas que o antecediam foram passadas em reflexão, nem o Carlos Mendes nem a Patrícia não me haviam dito como o plano seria executado naquela noite, apenas que seria naquele espaço, não tinha forma de o evitar de se iniciar. Recebi as plantas de todo o estabelecimento, conhecia o restaurante de algumas noites lá passadas entre copos de bacardi. Decorei facilmente os cantos à casa, no seu interior estariam apenas dois funcionários, o Lemos e o Carlos. Das seis mesas de jantar, metade estariam ocupadas por nós e nenhuma das outras ocupadas, alguém se deu a um grande trabalho a preparar o terreno, fazendo uma marcação simultânea para as restantes vagas.
Mara foi com a irmã para Lisboa, no meu carro levei o Alexandre e o Gonçalo, também eles convidados. as dúvidas voltavam á carga, tentava lutar contra o que me corria pela cabeça, queria fugir, mas não me deixava levar.
Rapazes, eu não vos contei propriamente o que andei a fazer durante estes dez meses fora de Portugal. - desabafei.
Queria continuar a conversa, contar-lhes todos os detalhes, mas a iniciativa desvaneceu-se. Uma força interior maior fez com que os meus lábios se selassem. As cores do ambiente transformaram-se em cinzentos quando aquelas palavras disse, ofuscavam-se neste meu parecer. Queria que o Gonçalo e o Alexandre tivessem a minha visão das coisas, um auto-retrato do meu intimo, a falta de alegria do meu ser. Naquela noite não sabia quem iria ser, ainda estava para perceber, mas algo teria de acontecer.
Pedi-lhes que confiassem em mim, fizessem o que lhes pedisse sem hesitarem, em nome dos bons velhos tempos. Eles não percebiam o teor das minhas palavras, pensavam que enlouquecera de vez, mas teria de os cativar a acreditarem em mim. Sabia que algo de grave iria acontecer no interior do restaurante naquela noite e quando fosse o momento, estes dois teriam de estar longe dali, não suportaria ter de viver com a perda das suas vidas em consciência. Eles não ficaram nada convencidos, infelizmente não poderia ser mais claro com eles, teriam simplesmente de esperar o inesperado e acreditar em mim.
Estava perdido num caminho que era a sombra de uma dúvida...
Esse caminho levou-me ao Esqueci-me como destino, ainda vazio e acolhedor quando lá cheguei, quase por ninguém esperei. Entrei com dois amigos, a casa era nossa, estava colorida demais para o meu estado de espírito, tanta luz odiei, tentei-me isolar num cantinho lá escondido. Sabia que dali não escaparia, o ambiente engolia quem nele se deixasse absorver.
No restaurante estavam alguns convidados sentados, alguns amigos em comum. Os rapazes e a Mara faziam a minha ponte de ligação com as restantes pessoas sentadas à mesa. Haviam outras celebridades à força naquele pequeno Patrícia chegava e cumprimentava quem se propusera aniquilar, os seus lábios quentes escondiam uma fria e vil predadora que naquela noite se mostraria. Estava determinado em não deixar que a sua vontade fosse avante, ela precisaria de mim para os eliminar aos cinco e seria aí que revelaria as minhas verdadeiras intenções.
Chegavam as sobremesas e nada se tinha passado, Patrícia levantou-se da mesa e fez-me sinal que a acompanhasse.
Alexandre, toma as chaves do meu carro.
Então, que se passa? – perguntava ele.
Lembras-te do que falámos no carro? Pois, está algo para acontecer.
O Gonçalo estava atento, a sua expressão deixara de estar sorridente e abava a cabeça em sinal de consentimento, no entanto, tinha quase a certeza que não estava a perceber nada do que lhes dizia e abanava a cabeça apenas para que me calasse até que a maluqueira passasse.
Alexandre, vai com o Gonçalo lá para fora. Entrem no carro e não saiam de lá até eu dizer.
Eles não se levantaram de imediato, estavam impávidos e serenos, atentos às minhas palavras mas inaptos de movimentos. Seria assim tão difícil que me dessem ouvidos por uma vez que fosse. Bem, talvez tivesse que lhes espetar com um garfo na perna para que acordassem para uma realidade que se aproximava cada vez mais veloz da deles a cada segundo que passava.
Mexam-se! – falei um pouco mais alto, apertando as chaves do Audi na mão do Alexandre.
Levantaram-se então dos seus lugares, deram um pouco nas vistas por saírem juntos, mas a mesa estava servida, os copos ficando vazios e a falta das suas pouco faladores presenças no seio daqueles convidados seria um mal menor. Deixei que atravessassem a porta, subi do meu lugar e fui de encontro à Patrícia que me aguardava na casa de banho. Não seria pelas razões de outros tempos, uma corrida semelhante a outras ocasiões, uma rapidinha para arruinar a monotonia, desta vez o assunto era serio e nada de prazeroso. Fiz uma chamada para o telemóvel do Gonçalo, atendeu de imediato, pedi-lhe que em situação alguma, por muito estranho que lhe parecesse, nada dissesse, apenas escutasse o que se iria passar nos minutos seguintes. Coloquei o telemóvel no bolso do casaco e entrei na casa de banho.
As medidas tinham sido tomadas de antemão, muito antes de chegarmos ao restaurante. Patrícia tirava objectos de um saco de viagem colocado debaixo do lavatório. Ela parecia estar com pressa, colocou-me ao corrente da situação, só então. A iluminação seria cortada, as portas automáticas baixadas e uma bomba de gás seria lançada como engodo no curto espaço interior do restaurante. O efeito anestésico do gás dar-nos-ia tempo para transportarmos aquelas cinco pessoas para uma carrinha que aguardava nas traseiras e prosseguir para a segunda etapa do seu plano maquiavélico.
Queria impedir a Patrícia de colocar o plano em prática, mas estava parco em ideias, não havia maneira simpática de a deter naquele momento sem levantar a mínima suspeita da minha consciência pesada.
Calma, conta-me ao menos o que eles fizeram. Porque razão vão eles morrer?
Preciso de saber, depois ajudo-te no que quiseres. – insurgi-me.
Ela parecia não se interessar pelas minhas dúvidas. Peguei nos seus braços e lancei-a contra a parede, num gesto de redenção, beijei os seus lábios. A bela rapariga não reagiu da forma como esperava, retribuiu o beijo e numa explosão de desejo carnal, mordeu-me o lábio, afastando-me para o lado.
Logo! Agora temos um jogo para terminar. – dizia ela, ofegante.
Continuava a remexer no saco de viagem
Por favor, preciso mesmo de saber. – insisti.
As palavras custavam a ser arrancadas, mas acabou por ceder vendo a minha passividade diante da porta da casa de banho. Estava impaciente, queria despachar aquilo de uma vez por todas.
Eles fazem parte do projecto Niemitz.
Fiquei sem perceber muito mais, mas ela nada mais disse. A sua paciência para com o meu comportamento nada profissional parecia estar a esgotar-se, entregou-me bruscamente para as mãos uma máscara de gás e deu um sinal telefónico ao exterior para avançarem.
As luzes apagam-se, escutam-se alguns gritos no interior da sala de jantar, Patrícia agarra-me pelo braço e leva-me para lá. É lançada uma granada de gás, o efeito foi rapidamente assimilado pelos presentes, tosse, alguns vómitos e uma rápida perda de consciência foram os passos seguintes. Não havia tempo a perder, em menos de um minuto transportámos dali os cinco alvos.
A carrinha arrancou a toda a velocidade, uma Ford Transit com interior de carga atrás e apenas bancos na frente. Patrícia e o condutor seguiam na dianteira, eu tinha ficado atrás com os restantes cinco. A velocidade depressa regressou à de cruzeiro, a zona era populosa e não se poderiam arriscar a serem mandados para pela polícia. Eu também não poderia arriscar que desaparecêssemos do interior da civilização e nos refugiássemos nalgum recanto remoto. Ainda com o telemóvel no bolso, pedi ao Alexandre que nos seguisse.
Ainda falta muito? – gritei para os bancos da frente.
A carrinha era fechada entre habitáculos, não escutava nada do que a Patrícia e o condutor gritavam do outro lado. Pela janela a escuridão tomava conta da paisagem que caía sobre as árvores do Monsanto.
Estamos quase lá. – gritava a Patrícia do lado de lá.
Revistei as carteiras dos jovens capturados na expectativa de encontrar algo incriminatório ou simplesmente algo que me explicasse o teor de toda esta perseguição às suas vidas. Nada encontrei, nem remexendo nos objectos pessoais que cada um trazia no corpo, absolutamente nada. Havia apenas um única coisa que estas pessoas tinham em comum, eram todos estudantes na mesma faculdade, também a do Gonçalo.
Gonçalo, conheces algum projecto chamado Niemitz? – perguntei.
Claro que conheço, isso foi explorado na minha faculdade.
Pois, eu sei. Mas do que se trata?
É um software que descodifica qualquer sinal transmitido via satélite.
Então era aquela a razão de tanta confusão. Cátia e os seus amigos não eram nem de perto nem de longe os terroristas que me fizeram crer, eram simplesmente uns miúdos que tinham feito algo que certamente desagradara alguém importante, não poderia deixá-los morrer apenas por isso. Não poderia perder mais tempo, num acto desesperado, pedi-lhes que abalroassem a carrinha e nos fizessem sair para fora de estrada, seria a nossa única salvação ou morreríamos ao tentar. As encostas íngremes do Parque do Monsanto, as suas árvores junto à berma da estrada e o isolamento do local teriam de servir de fachada a uma fuga não planeada.
Está bem! Segura-te! - gritou o Alexandre do outro lado da linha.
Não tive tempo de pensar onde me abrigar, peguei no adormecido corpo da Cátia e aninhei-a nos meus braços. Escutei a aceleração potente de outro carro no exterior, aproximava-se com grande força pela traseira... O embate não se fez esperar! Os nossos corpos saltaram naquele furgão oco, o guinchar dos pneus no asfalto servia de sinfonia, os gritos na frente anunciavam uma dor alucinante que nos esperaria na encosta mais próxima.
A carrinha parou abruptamente, doía-me o corpo todo. Alguns amigos da Cátia sangravam, ela parecia-me bem. Uma das portas traseira da carrinha foi aberta, a outra parecia presa e toda retorcida. Do lado de fora, uma luz forte, alguns metros acima do nível onde me encontrava jogado, ofuscava-me a visão turva e perturbada pelo violento embate. Eram os faróis do meu carro, pelo menos ainda um, o outro parecia fundido.
O Alexandre e o Gonçalo forçaram a abertura do resto da porta, tiraram os cinco jovens, ainda adormecidos durante mais algumas horas pelo gás. Ajudaram-me a sair, coxeava da perna direita, segui-a uma dor nas costelas e a cabeça que queria rebentar. Fora isso, continuava vivo.
No banco da frente a realidade era mais sangrenta, Patrícia parecia-me apenas inconsciente, tinha alguns sinais vitais, apesar de ténues. O desconhecido condutor tivera uma sorte diferente, o seu corpo estava trespassado pelos ramos de uma árvore, a mesma que nos tinha amparado a queda numa qualquer encosta no Monsanto.
Os rapazes e a inofensiva Cátia estavam a salvo, amontoados no banco traseiro e na mala do meu amolgado carro. Não haveria tempo a perder, a qualquer momento poderia passar alguma pessoa. Apressei-os a fugirem e a irem a um Hospital. Que pedissem de imediato protecção policial, as suas vidas iria dar uma volta inesperada.
Alexandre continuava fora do carro, como se esperasse por mim.
Anda, não podes ficar aqui. – gritava ele.
Eu não poderia ir com eles, estaria a comprometer a minha vida se soubessem que tinha sido um dos responsáveis pela fuga de cinco alvos assinalados. Não seria apenas a minha vida ameaçada, também a de todos os que me rodeiam e que parecessem cúmplices aos olhos severos de quem procura respostas rápidas para soluções complicadas.
Fujam... Não sejam estúpidos, fujam! – insisti, exaltado.
O Alexandre tomou o volante do carro, estava a demorar uma eternidade para sair dali.
Que vais fazer quando perceberem que foste tu quem os salvou?
Não sabia como lhe responder, não tinha pensado tão longe, a única preocupação naquele momento seria salvar aquelas pobres vidas. Mas uma coisa seria certa, mesmo que fosse descoberto e morresse, levaria todos os que pudesse comigo.
Não me estragues o motor, voltarei para buscar o carro. – despedi-me, ironicamente.
Ele finalmente arrancou, tinha em mente que iriam conseguir safar-se. Não poderia estar sempre ali para os ajudar a viver, mas a esta madrugada sobreviveram, um novo dia iriam ver nascer. Saquei o telemóvel do bolso, por momento esquecera-me dele ali. Chamei uma ambulância e desci a encosta. Voltava à carrinha, Patrícia estava presa na porta do seu lado. Consegui que se desprendesse com algum esforço, as minhas forças esgotavam-se e a pancada sentida na cabeça durante o embate estava a inchar, ficava tonto e desnorteado. Arrastei a Patrícia para a proximidade da estrada e de um afastado candeeiro na berma. Não me sentia bem, agasalhei o seu corpo ensanguentado e encostei a sua cabeça no meu peito. Os segundos pareciam horas, a ajuda tardava em aparecer, senti-me adormecer, desconhecia o que estava para acontecer.

terça-feira, dezembro 05, 2006

A nova história não sai, não consigo escrever uma palavra mais que seja. A chama da musa extinguiu-se, nenhuma outra tomou o seu lugar, aquele recanto sagrado em mim e que tantas forças e horas de imaginação me deu, está agora sem chama, sem paixão que me assole e devolva tantas e muitas palavras por escrever.

Então, entregue a uma sorte cruel, corri para um refugio.
Num rasgado papel escrevi palavras que sairam de forma dolorosa...


Mulheres bonitas há muitas, as que assemelham a sua beleza interior à aparência exterior, no entanto, são poucas. Tu pertences a esse grupo restrito, és uma dessas doçuras, pelo menos, aos meus olhos.
Não há palavras que possam descrever o que sinto por ti, é algo profundo, vem do meu íntimo e agita a minha vida. É algo carregado de um vasto sentimento de carinho, algo que me faz aproximar de ti, escutar a tua respiração e sentir o teu aroma.
Talvez seja paixão, não tenho a certeza, desde que te conheci passei a desconhecer essa palavra, certezas. Contigo tudo é diferente, é um sentimento novo para mim, nunca antes o senti por qualquer outra pessoa.
Porque fui eu gostar tanto de ti?
Recordo no brilho dos teus olhos o melhor que esta vida tem, no sabor dos teus lábios que existe perfeição e na ternura dos teus gestos que ainda há esperança.
Apetecia-me abraçar-te, ter-te agora junto de mim, talvez não seja possível. A vida por vezes prega-nos destas partidas.
Porque não te conheci anos antes?
Seria algo preparado pelo destino? Talvez.
Agora sinto que a minha janelinha se fechou, o meu mundo contigo acabou, algo nos separou. Só queria uma vez mais abraçar-te, sentir o teu cheiro e deixar-te partir, livre para viveres, longe de mim enfim.

Escutaste a minha alma, incendiaste onde tocaste e deixaste uma leve brisa de paixão por onde passaste. Repete os teus passos, não vejo a hora de te sentir novamente, tocando no meu íntimo e abrindo o meu coração.
Não sonho mais contigo, acordei e vi que continuavas ali a meu lado, naquela cama enorme. Tentei tocar-te, algo me impediu. O teu corpo caloroso dormia docemente, não tive coragem de importunar essa paz. Voltei então a adormecer, regressando ao mundo da fantasia, onde te poderia tocar sem te incomodar.
Que se passa comigo?
Vivo numa mentira, alimento-a com gosto e deixo-me perder na sua fantasia.
Seria isto que imaginei?
Afinal não acordei, tu dormindo a meu lado era um sonho. Esse mesmo sonho de que ainda não despertei, essa mentira que vou vivendo. A única verdade és tu, o teu corpo, o teu cheiro... são bem reais, mas distantes de mim.
Vives na minha imaginação, puxei-te da realidade e fechei-te num recanto só meu, onde te admiro quando quero. Não gostaria que fosse sempre assim, deixar-te gostar de mim seria a solução.
Que te afasta de mim?
Sou eu, bem sei.
Finalmente despertei, não estás aqui a meu lado dormindo.

Dá-me algo com que sonhar...

terça-feira, setembro 05, 2006

Cidade Proibida

Sentia-me óptimo, como se tivesse com uma grama e tal de coca nos cornos, fartei-me de dizer merda durante toda a noite, viver sem cessar, chateei quem naquela noite me acompanhou. Tenho pena, muita pena. Não fumei, não me droguei, mal bebi... Andei a cair nos vícios da monotonia. Naquele dia acordei diferente, sentia-me ainda mais parvo, gostava de como me sentia, adorava o que via, saboreava o que tocava. O dia estupidamente passado a trabalhar chegou ao fim, cheguei a casa de noite, o jantar por comer, lá o deixei arrefecer e corri para uma festa com a minha amiga Mara.
Saí para a rua, fui ter com amigos, tantos parvos eles como eu, todos brincámos, todos gozámos. Tinha o cabelo estupidamente arranjado, uma de muitas coisas estúpidas em mim, o vento soprava e criava em mim uma revelia estilista, ficava elitista. Velhinhas assustavam-se, atravessavam passeios, jovens voltavam a cara, sentiam-se incomodados. Sinceramente, caguei e gostei.
O reboliço da noite acabava, deixei a Mara em casa e subi para tomar um último copo. Caí com a Mara na cama, apesar de nada mais termos que amizade entre nós, dormi com ela na sua cama. Envolvi-me nos seus lençóis , sentia-me podre de bêbado, não esperava coisa boa. Não sabia se sonhava, se estava acordado, se morto. Vivia um mundo diferente, estava diante de estátuas, caíam sobre mim... Quis acordar!
Abri os olhos e estava subterrado, certamente não acordado.
Ficava sem oxigénio, estava a perder-me...
Acordei por fim, não dormia de verdade, fechava os olhos, enfim.
No sonho, troquei um olhar com algo desconhecido, nada de esclarecedor me contou, foi uma visão que nada de novo me despertou. Qual coisa generosa, qual coisa poderosa, nunca o bom se revela, esconde-se nos tempos que vamos vivendo, simplesmente vai aparecendo, fazendo o momento.
Ainda era de noite lá fora na rua, temia-se que longa.
No meu modo molengão, relaxado, descabido de responsabilidade, sensível aos sabores da vida e adocicado por uns lábios rosados, paro o que à minha volta gira, capto um momento meu assim.
Apetece-me cobrir... Sei lá, os montes de areia, gritar bem alto e dizer que sou assim. Estava coberto de argila, enterrado no meu próprio covil, inclinei a cabeça para o lado, nada vi, nada senti. Derramava uma lágrima em silêncio. Continuava bêbado, voltei a cair nas garras de uma noite de alucinação.
Acabou-me a merda da história do mundo girar, sempre o fez, não precisa que eu o repita constantemente em tudo o que é frase. Sempre continuará...
Há coisas que nunca mudam, a vida, o estilo das coisas, o jeito de viver e para muitos a maneira de amar. Fecha-se um novo ciclo, o mundo continua a girar, tenta-se recolher pequenos pedaços de nós desfeitos no exausto e ardido antro de paixão, o mundo continua a girar, consegue-se levantar para mais tarde se cair, continua a girar, sofre-se cá dentro, e este não pára.
Foi como condensar todo o mundo num só grito.
Torno a acordar, desta vez mais sóbrio e sem merda que pensar.
Não aguentava mais estar deitado, não deveríamos ter bebido tanto na noite anterior. A doce Mara voltava da casa de banho, tinha feito nova viagem para vomitar. Enquanto ela limpava a boca e esfregava os olhos, vesti as minhas roupas deixadas caídas no chão do seu quarto e despedi-me da minha amiga com um beijo na testa. Conduzi lentamente até casa, entrei silencioso e adormeci logo no sofá.
O dia foi passando, ia notando quando um olho ia abrindo de vez em quando. Acordei completamente quando o telemóvel tocou, era a Emiliana. Estava preocupada comigo, tinha-me visto abandonar a festa num estado lastimável. No entanto, sentia-me quase recuperado e pronto para outra, bem, quase.
Tinha que me despachar, havia novamente festa programada para aquela noite. Não teria de dizer boa noite a alguns merdas que não queria, era privada, com algum glamour e com um gosto especial. A Mara trabalhava para a imobiliária que tinha tomado conta da exploração de uma casa dentro do Castelo de Palmela, a mesma onde decorriam as quentes festas organizadas pelo falecido Miguel. Seria a última noite antes dos novos donos tomarem conta do espaço, faríamos lá a festa de despedida. A noite teria outros interesses associados para serem celebrados, o nosso amigo Mário estava completamente recuperado do tiro que levou na nalga, naquela mesma casa, e juntava-se a nós naquela noite. Mara levava uma amiga nova, chamada Débora e corriam rumores que era linda.
Como combinado, levei a Emiliana no carro comigo. Na chegada ao Castelo senti um arrepio, era a primeira vez que regressava àquele local após a batalha campal ocorrida dentro daquelas muralhas depois de uma festa de arromba e que teve como desfecho trágico a morte do Miguel e todos os acompanhantes no seu potente jipe que me perseguia. O pior ficava para trás, a noite era de festa e essas lembranças depressa foram esquecidas quando entrei no salão nobre e vi os meus amigos. Estávamos todos os cinco esperados naquela ocasião e duas raparigas servindo bebidas. Todos nos servíamos como queríamos, começava uma festa. Ficámos remetidos a uma pequena parte do Castelo, somente na casa rústica que o Miguel tinha alugada para as suas festas de culto. De copo na mão, sempre cheio, percorremos os quartos onde antes alguns de nós tinham partilhado aventuras e desenrolado cartadas no jogo de swing. Os tempos eram outros, essas aventuras não mais se passavam. Descemos para as caves, haviam dezenas de garrafas de bom vinho por abrir, os nossos olhos arregalaram-se e desejavam que fossem incluídos no banquete. O espaço era bonito, estava rusticamente bem decorado, ao fundo num dos cantos da adega, estava uma estátua que me parecia familiar. Não me recordava ao certo onde teria visto tal figura, aproximei-me e toquei no delicado objecto. Era uma estátua do meu tamanho de um guerreiro asiático feita em terracota. Estava impressionado com a sua magnificência e comecei a lembrar-me de onde tinha visto algo semelhante. A expressão asiática na face da figura, o mesmo formato da armadura e a posição de combate do guerreiro eram idênticas às que tinha visto no meu sonho embriagado.
Contei a todos o meu sonho, sorriam e gozavam discretamente.
Abrimos duas garrafas de vinho e continuámos a nossa festa na cave. Eu permanecia especulativo, estava inquieto, aquela figura medieval desviava-me a atenção. Havia algo de perturbador naquela estátua, o guerreiro não tinha uma arma na mão, em seu lugar possuía apenas um velho papel dobrado. Estava curioso, tentando não derrubar o artefacto, peguei no enrugado papel e vi a surpresa que nele escondia. Parecia um velho trapo, uma espécie de papiro antigo com um mapa desenhado. Não eram perceptíveis as localizações concisas daquelas indicações, nem em que ponto do mundo haveria algo semelhante ao que ali víamos desenhado, mas esconderia algo de importante, assim o parecia pela natureza e trato do papel. Alguém se tinha dado a bastante trabalho.

Mapa do Tesouro

Mara reconheceu a origem da estátua, o soldado em terracota que estava no nossa adega era um dos guerreiros de Xi’an que deveria estar junto do túmulo do seu imperador chinês. Era super valiosa de acordo com o seu detalhe e ainda bom estado de conservação, a nossa amiga não sabia porque razão teria ido parar perdida àquele local. Na base da estátua estava uma carta, era do irmão do Miguel, o mal afortunado e falecido Heitor. As palavras no papel contavam que a estátua era uma oferta para o seu irmão Miguel e, de acordo com o restante texto, parecia ter sido enviada na fase final da sua vida, pouco antes de ser capturado e se ter enforcado na prisão. Nela, avisava o seu irmão que estava sendo perseguido pela Agência e que pressentia que a sua vida estaria certamente ameaçada. Deixava-lhe então o seu maior tesouro, caso algo lhe acontecesse, fosse ele o primeiro a apoderar-se do seu espólio. Na carta não fazia referência ao que se tratava concretamente, apenas mencionava que existia outra peça do puzzle que lhe iria fazer entender a localização exacta do primeiro mapa que lhe enviara, estando guardada na sua casa de férias em Tenerife. A carta estava assinada com o nome Heitor e este deixava uma última nota de rodapé, Reflecte e flutua.
Por ironia do destino, Heitor não pode contar com a colaboração do seu irmão Miguel, também este havia sido assolado por uma morte trágica e quem iria tentar reclamar o seu tesouro seria quem directamente esteve envolvido na destruição da sua família. Surgia de imediato o interesse pela descoberta, teria de convencer os meus amigos a embarcarem nesta aventura comigo, mas não foi necessário grande esforço. A excitação era tanta que fazíamos planos para organizar uma exploração em busca de um tesouro que desconhecíamos o que continha ou sequer se existia.
Aquele mapa era uma herança do Heitor, sem mais ninguém para o reclamar, empurrava-nos directamente para a ilha de Tenerife em busca da outra peça do puzzle que nos faltava e assim descobrir onde estaria tal riqueza. Nessa mesma noite planeámos a viagem, precisávamos de dinheiro, a Mara ficava encarregue de tentar vender a estátua e assim financiar a nossa expedição.
O problema estava que não sabíamos onde era a casa do Heitor, o seu nome não aparecia nas listas telefónicas de Tenerife e a ilha era enorme demais para procurar uma agulha num palheiro. Só havia uma pessoa que talvez soubesse algo que nos pudesse ajudar, não estava certo que o faria ou fosse a melhor alternativa mas de momento seria a única possível. Na manhã seguinte, enviei um email para a Patrícia explicando a situação, esta era a única forma encontrada para contactarmos. Depois de almoço recebi a sua resposta, ela sabia da existência do mapa que possuía e desconfiava que esconderia algo valioso, tão importante ao ponto do Heitor ter abandonado a Agência e isso levado à sua morte prematura. Ela indicou-me a morada da casa do Heitor em Tenerife, esta pertencia à sua filha após a sua morte na cela de prisão. Seguíamos quatro pessoa para Tenerife, Mara não nos pode acompanhar. Eu e o Mário tratámos da logística e as meninas fizeram as malas. Iríamos ficar alojados num hotel em Puerto de la Cruz, na parte norte da Ilha, a poucos quilómetros da casa do Heitor. Partimos na nossa aventura quatro dias depois.
Tudo parecia calmo na nossa chegada às Canárias, viam-se imensos turistas, bastantes guias e o calor era insuportável. Nesse mesmo dia alugámos um carro e descobrimos a casa, era uma pequena mansão em plena zona montanhosa, com vista para o mar. não parecia guardada, haviam poucas casas na vizinhança e a zona era sossegada. Regressámos àquela zona no final do dia para levantar menos suspeitas, sem avistar vizinhos, tomámos a casa de assalto. Tinha o alarme ligado, teríamos de ser rápidos antes que dessem conta que havia algo de errado na casa que seguravam. Cortei a alimentação da pequena central de alarme, a bateria não reagiu, como esperado, estaria estraga após meses sem qualquer funcionalidade. Não que soubesse alguma coisa sobre assaltos a casas, mas a electrónica era universal. Entrámos silenciosos, partindo um pequeno vidro na porta, vasculhámos toda a casa. Nada, não encontrávamos absolutamente que se assemelhasse a um mapa. Nenhum papel nos mostrava o que procurávamos, talvez estivéssemos a procurar nos sítios errados, talvez procurássemos por algo errado. Começámos a mostrar sinais de cansaço, perdíamos a paciência, o alarme não tinha disparado mas instalava-se entre nós um clima de dúvida e inquietação acerca de toda a viagem. O nervosismo foi crescendo, ficava chateado com a situação e um pequeno pisa papeis em cima do piano levou com a minha ira. Peque no pequeno objecto de pedra de descarreguei a minha impaciência contra um espelho que se encontrava numa das paredes da sala, sobre a lareira. Nem vi os cacos de vidro caírem no chão, sabia o que tinha feito, sentei-me de imediato no sofá.
Olha, aquela tábua... – dizia a Emiliana.
Mário aproximou-se dela, a principio não liguei, mas levantei-me de imediato quando a Débora se cercou deles e começaram a rir. A base do espelho que tinha partido era uma madeira em forma de concha com algo cravado na sua superfície. Retomava algum gosto pela expedição, retirámos os restantes pedaços de vidro da base e conseguimos ver na totalidade o que tínhamos descoberto. Era aquela a nova pista, uma velha concha de madeira, não maior que uma bola de futebol. Incidindo a luz sobre as gravuras, decifrámos que clareza que se tratava da Colômbia, víamos assinalada a capital Bogotá e uma linha traçada para Cali, na região de Valle del Cauca. A linha não parava naquela zona, seguia até um ponto cravado junto à costa, em pleno Oceano Pacifico no seguimento do rio Naya. Seria para esse ponto, possivelmente a Ilha desenhada no papiro enrolado que estava na mão do guerreiro em terracota, que teríamos de seguir.
Regressámos em seguida ao hotel, pouco passava da hora habitual de jantar. A agência de viagens no hotel ainda estava operacional e marcámos de imediato a nossa viagem para a Colômbia, aquela seria a nossa última noite em Tenerife.
O Mário e a Emiliana estavam enérgicos e excitados, ainda foram sair para a noite. Passavam-me tantas outras coisas pela cabeça que não divertimento em bares e discotecas, estava entusiasmado com a descoberta mas as incertezas de que poderíamos alcançar algo eram diminutas, uma longa viagem até à Colômbia, todos os perigos inerentes àquele país e a custosa travessia de uma região de florestas densas em penhascos enormes e passando ao lado de uma guerra civil não eram pontos fortes a nosso favor. Fiquei pelo hotel, a Débora fez-me companhia ao jantar. Tinha ficado uma noite agradável para nós, jantámos numa varanda quase sobre o mar. As luzes das velas notavam-se mediante a fraca luz artificial, o bom serviço do restaurante e delicioso sabor da comida deixavam-nos satisfeitos e saciados. O ambiente era caloroso e bebemos um pouco demais, trocámos o vinho pelo bacardi e as nossas emoções ganhavam outras expressões. Nenhuma palavra quente trocámos, os nossos olhos queriam dizer tanto, a impaciência e os movimentos repetidos das nossas mãos mostravam muito mais. Nada dizíamos, no que seria quem pensávamos.
O jantar tinha terminado, subimos calados no elevador, caminhámos em passos lentos para os nossos quartos. Continuávamos em silêncio, despedi-me da Débora com um simples beijo na face, os lábios demoravam a descolar da sua pele macia. Os desejos eram outros, mas nada mais se passou. Não queria, não poderia. Desconhecia o que se passava na cabeça dela, senti por momentos o sabor a desilusão na sua expressão. A Débora abriu a porta do quarto e fechou-a atrás de si sem se despedir, fui para o meu, a meia dúzia de passos daquela porta.
Antes de rodar completamente a maçaneta da porta do meu quarto, senti o desejo crescer, a necessidade de me aproximar da Débora e molhar os meus lábios nos seus, sentir o calor do seu corpo. Tornei a fechar aquela porta, não era ali que me traria felicidade naquela noite. Corri como um louco, não mais que quatro metros, bati na madeira da sua porta e no segundo toque a porta abriu-se, Débora aparecia diante de mim, aceitava-me junto de si. Entrei lentamente no seu quarto, não falávamos, olhávamos fixamente nos olhos um do outro, as minhas mãos estavam inertes, eram arrastadas pelo meu corpo e esperavam um sinal de desejo para tomarem conta do momento de paixão. A porta atrás de nós fechava-se, a bela mulher colou o seu corpo no meu, estava feita a faísca. Débora estava quente, o seu corpo fervia. Despiu-me a camisa partindo alguns botões, sentia nas suas mãos sobre mim o calor aumentar. A sua boca acercou-se do meu peito e desceu lentamente para a cintura, beijando e chupando cada pedaço meu que os seus lábios encontrassem. Permaneci de pé encostado a uma parede, estava completamente imóvel, dominado por aquela mulher. Deixava que ela seguisse livremente todos os nossos instintos, baixou-me as calças sem as desapertar e mordeu-me o corpo através dos boxers, excitando-me com o seu calor, pedindo que fosse a minha vez de continuar o jogo. Puxei pelo seu cabelo, queria provar os seus lábios, saborear o calor da sua boca. Estavam doces, conservavam ainda o sabor do bacardi. Débora queria brincar um pouco mais, mordeu-me os lábios com alguma violência, a pequena dor que senti foi rapidamente esquecida pelo calor húmido da sua língua. Virou costas e afastou-se, vagueando quase nua pelo quarto escuro provocando-me com o seu sensual caminhar, caindo depois sobre a cama, aguardando pelo meu corpo, querendo o meu calor. Trocámos uns beijos calorosos e algumas carícias. A bela menina estava tensa, massajei as suas costas, comecei calmamente pelos ombros, humedecendo a sua pele com os meus lábios, antes de passar com o calor das mãos. O seu corpo reagiu de imediato, libertando um calor imenso, começando ela a suspirar a cada toque mais provocante que lhe ia dando.
A última peça de roupa que cobria o seu corpo levou horas para sair, em toda a sua pele toquei e acarinhei. Perdia-me constantemente no seu peito e descia sem rumo pelo seu corpo, massajava as suas pernas e no calor dos seus lábios me reencontrava. Estávamos bem, sem a pressa inicial, o amor fluía e o desejo controlava os nossos movimentos.
O tempo avançava, a noite segui o seu percurso habitual e uma leve brisa marítima entrava sorrateira pela varanda do quarto, refrescando os nossos corpos exaustos. Fizemos amor, o tempo deixara de ser importante, sentimos que acabámos quando os nossos corpos se sentiram saciados e o nosso desejo passou de carnal a apreciar o belo momento calmo que desfrutávamos, quisemos adormecer ali bem juntos, enrolados um no outro.
Tomámos um duche em seguida, ainda com as toalhas enroladas, procurámos o vento suave que corria no nosso balcão de varanda, partilhando uma cadeira uma cadeira e todo um céu estrelado que nos servia de absolvição. Foi bom, foi doce, soube a calor de Verão.
Adormecemos naquela varanda virada para o mar, os nossos corpos despidos procuravam aquecer entre si, a temperatura tinha baixado na rua. O novo dia vinha a caminho, o Sol começava a nascer lá ao fundo no mar, ainda bem longe sobre o horizonte. Bocejei, a bela Débora continuava no seu sono sem que nada a importunasse. Os nossos braços estavam agarrados nos meus, aninhava a sua cabeça no meu peito e naquele recanto se deixava ficar.
Não mais fechei os olhos, era um momento bom demais para desperdiçar sonhando quando o poderia viver ao vivo. Entre o barulho das ondas que escutava e me embalava, ouvi outro por trás de nós. A porta do quarto fechava-se, era a Emiliana que tinha entrado. Chegava da noite, regressava sozinha, deveria ter largado o Mário no nosso quarto, mas pela hora tardia, não havia de lá saído sem diversão. A rapariga entrou e nada nos disse, foi á varanda, olhou-nos de perto e tornou a entrar no interior do quarto. Caiu como que inanimada na cama onde antes havíamos feito amor. Parecia cansada, depressa fechou os olhos e adormeceu.
Aquele seria o nosso último dia em Tenerife, tínhamos o mapa que tanto queríamos e as passagens para o outro Continente estavam marcadas para a tarde que se seguia. Acordámos quase em cima da hora de almoço, aproveitámos as poucas horas que nos restavam da estadia como se fossem férias e passeámos pela praia antes que o táxi nos viesse buscar para o Aeroporto. A areia preta das cinzas vulcânicas serviu-nos de sala de espera, apanhávamos os nossos últimos raios de Sol naquela ilha paradisíaca.
O táxi chegava por fim, no final daquela tarde, voámos entre capitais fazendo escala por Madrid. A travessia foi longa, mas na manhã do dia seguinte aterrávamos em Bogotá.
O clima era bastante húmido, suávamos por todos os poros. Nada conhecíamos da cidade, a confusão era enorme, esperávamos por um táxi na porta do Aeroporto e a nossa vez nunca mais parecia chegar. Era tudo tão diferente do que estávamos habituados, as pessoas, os costumes e toda aquela azáfama e turbilhão urbano que não nos dava descanso.
Fomos para o primeiro hotel que o taxista nos recomendou, tínhamos que descansar e planear como atravessar cerca de quinhentos quilómetros naquele caos social. Grande parte da viagem seria feita por comboio, até Cali, depois teríamos de nos sujeitar a uma longa viagem de autocarro por montanhas agrestes. Quando descêssemos da camioneta, esperávamos um dolorosa caminhada, que não se esperava nada fácil, até alcançarmos a baía assinalada no mapa e de lá vermos o mar e a nossa ilha do tesouro.
Após o jantar, as meninas subiram aos quartos para dormirem. Saio para a noite com o Mário, queríamos conhecer um pouco da noite da cidade que nos acolhia. Entrámos no primeiro bar sem bêbados na porta que descobrimos, bebemos dois copos de rum e seguimos para uma discoteca, seguindo um pequeno grupo de mulheres. A música estava forte, as bebidas vinham chegando, o ambiente ficava ao rubro. Uma bela senhora aproximou-se de nós, bem vestida e com uma cara linda. Meteu-se connosco, brincou primeiro com o Mário e virando-se depois para mim. Mordeu-me a orelha com a ponta dos dentes, logo depois de se apresentar, o seu corpo roçou na minha cintura e os seus dedos enrolaram-se no meu cabelo solto. Deixava-me levar pelo tom da música, o sensual dançar do seu corpo enchia-me de excitação, beijei-lhe carinhosamente o pescoço, pedia ardentemente pelo caloroso sentir dos seus toques.
Aquela música acabava, trocada por uma outra mais calma. Ficámos parados no meio da multidão.
Te quiero. – sussurrou ela no meu ouvido.
Escutava o seu espanhol num tom melodioso, a sua voz era quente.
Ven a mi... Te quiero seducir. Dame tu cuerpo.. – acrescentou, agarrando forte na minha braguilha e fazendo a sua mão entrar lentamente depois de a desapertar. Fiquei louco de desejo, completamente rendido àquela colombiana. Começava a gostar daquele país, nem tudo parecia mau.
Mas o seu propósito era diferente do meu, passadas as apresentações calorosas e os jogos de cintura, a bela mulher insurgiu-se com uma proposta, perguntando-me quanto pagaria por uma noite com ela. Sorriu em seguida, desconfiei logo que havia uma contrapartida para uma aproximação tão agressiva e nada natural, estando algo mais em jogo que simples prazer, o seu desejo pelo recheio da minha carteira era mais que evidente. Queria cona, talvez dela, mas nunca pagaria por ela.
A elegante prostituta facilmente descodificou a minha resposta e partiu para um novo alvo de ataque naquela noite. Tanto eu como o Mário estávamos bêbados, ficávamos saciados para aquela noite e regressámos ao hotel.
O outro dia começou bem cedo, mal dormimos e quando realmente despertámos já estávamos a bordo de um comboio a caminho de Cali, passando pelas montanhas a caminho do mar. a viagem tornou-se menos cansativa que o esperado, tínhamos um compartimente de vagão só para nós com apenas outro turista partilhando-o. Chamava-se Bruno e vivia em Lisboa, a sua cara não me era estranha, já o teria visto certamente em qualquer outro local que passara. No entanto, nada mais descobri. O rapaz era reservado e pouco falou durante toda a viagem. O baloiçar das velhas carruagens e as florestas vastas de perder de vista embalaram-nos num sono pesado, acordámos com um oficial militar mandando-nos levantar, tínhamos chegado a Cali. O Bruno não estava mais ali, o cabrão já tinha saído mas não nos acordou.
Cali não nos apresentava grande história, pouco das suas ruas vimos. Era quase de noite, corremos para o autocarro que nos aguardava bastantes ruas abaixo da estação de comboios. Não conseguia pregar olho no autocarro, era uma velha relíquia que havia certamente cruzado muitas guerras, os tiros de balas das milícias nos assentos desconfortáveis e o cheiro a gasóleo queimado, o suor que nos escorria pelo corpo, os putos que subiam às janelas pedindo dinheiro sempre que se atravessava uma aldeia no interior do vale e algumas galinhas que outros passageiros transportavam eram nossos companheiros de viagem. Custou muito o passar daquele tempo, olhando agora para a janela embaciada onde tinha a minha cabeça encostada, via a claridade tomar conta da floresta em redor, o Sol aparecia e um novo dia estava a nascer.
Finalmente a camioneta parou, não aguentávamos mais. Deixou-nos numa aldeia próxima do mar, avistámos de imediato o cume descrito no mapa encontrado em Tenerife. Comemos numa tasca na aldeia, levantámos suspeitas de imediato, o espaço era controlado por milícias, possivelmente traficantes de droga. Fizemos o papel típico de turistas, olharam para nós de cima abaixo, viram que não constituíamos ameaça e não colocaram qualquer entrave à nossa passagem pelo seu ponto de controlo.
A cadeia montanhosa estendia-se do vale da aldeia onde estávamos para o nosso ponto de destino, uma baía que se escondia atrás do cume presente no mapa. A pobre estrada de pedras e terra batida por onde o autocarro nos tinha trazido perdia-se no interior da densa floresta e teríamos de continuar a pé dali para a frente.
El Icod del Diablo, o canto do Diabo, era o cume montanhoso para onde nos dirigíamos. A baía estava atrás da sua encosta que dava para o mar, teríamos de o contornar, seria impossível para nós escalar o pedregoso cume. Parecia que tínhamos o nosso ponto de destino tão próximo, mas na realidade estávamos bastante longe. Desconhecíamos os perigos que encontraríamos ao longo da caminhada e a vasta vegetação eram factores suficientes para nos preocuparem.
Não havíamos dormido nada no velho autocarro, todas as valas e buracos foram sentidos, para além do medo e da incerteza que nos acompanhava a cada passo dado no desconhecido, também a constante dor nas costas estava bem presente. Tínhamos deixado a aldeia para trás naquela manhã e começado a caminhada com os primeiros raios de Sol, já este havia corrido todo um horizonte e iluminava a sua última hora naquele dia antes de se pôr. Chegámos de noite ao vale do Icod del Diablo, as lanternas eram fracas naquela noite de Lua nova e estávamos exaustos. Não havia tempo ou forças para montar um acampamento, qualquer movimento mais seria um sacrifico para os nossos corpos debilitados. Pousei a mochila, vagueei um pouco nas redondezas procurando um sitio onde pudesse cagar, continuava demasiado próxido deles. O chocolate deu-me a volta à barriga, tinha sido apenas o que comemos durante todo o dia de caminhado sob um intenso calor. Fui a correr para a mata cagar. Os estragos pareciam grandes, tinha as tripas em alvoroço. Estavam todos a poucos metros de mim, tentava ajeitar-me encostado a um tronco de árvore, aromatizando os seus ramos com toda a essência de uma noite ao ar livre. O tempo ia passando, não estava com vontade nenhuma de me levantar daquela posição, tinha gasto as últimas forças a cagar, parecia confortável e um óptimo local para passar um serão. Senti-me adormecer, os olhos pesavam, as mãos estavam caídas pelos joelhos, a cabeça tombava sem direcção. Não senti despertar, mas acordava certamente. De olhos abertos e movimentos revitalizados, sempre de lanterna na mão, iluminava a vegetação tentando avistar cobras e outros pequenos bichos que não eram para ali convidados. Nada de estranho surgia, deixei tombar a lanterna com o cansaço e algo reflectiu de uma árvore. Puxei imediatamente as calças para cima, sem me limpar. Corri, pouco, parei e voltei a iluminar o que me tinha assustado. Não me podia deixar domar daquela forma pelos meus medos, calmamente, aproximei-me e começava a ver alguns reflexos ganharem formas. Parecia-me algo familiar, continuei aproximando-me, ainda que a medo, quando finalmente me apercebi do que tinha diante de mim. Chamei o Mário e as meninas, vieram a correr, pensaram que me tivesse acontecido algo.
João, que foi?! – gritava o Mário, aproximando-se.
Olha, olha para ali. – disse eu, apontando na direcção de uma velha carcaça de avião.
Vasculhámos o aparelho, encontrámos ossadas de corpos na frente, fazia muito tempo que ali estavam. O avião era pequeno, no compartimento de cargas estavam alguns caixotes e as raízes das árvores que o abraçavam tomaram aquele lugar sinistrado como local onde cresceriam. A nossa curiosidade era bastante, desconfiávamos do que se tratavam aquelas caixas em madeira, não foi surpresa quando abrimos uma e vimos dezenas de sacos contendo pó branco.
Isto é cocaína! – exclamava o Mário, depois de provar o produto.
Como sabes, porra? – perguntei-lhe.
Ora João, velhos hábitos nunca se esquecem. Está pura... Isto vale milhões. – acrescentava.
Sabia que o Mário consumia, não o fez naquela viagem, mas em muitas ocasiões anteriores. As nossas mochilas de campismo estavam completamente cheias, mas ainda assim, ele conseguiu arranjar espaço na sua para arrebatar dois daqueles sacos, tal era o seu desejo pela coisa.
Abrimos outros caixotes, o que se desvendava era igual. Dispusemos algumas tábuas partidas sobre o chão lamacento da estrutura do avião e utilizámos uns sacos como almofada. Acordámos na manhã seguinte com a forte chuva que caía, o bater da torrente de água na estrutura do avião cedo nos despertou. Ficámos amedrontados, parecia que a frágil carcaça ia ruir a qualquer instante e seriamos arrastados pelas chuvadas floresta abaixo. Ficámos reticentes em dar um passo fora do nosso refugiu, mas fomos obrigados a partir à medida que a água entrava dentro do avião. O caminho pela frente parecia ainda mais longo, não havia tempo a perder. Aventurámo-nos no diluvio tropical, levámos mais dois dias e duas noites a alcançar e transpor o vale do Icod del Diablo, chegando por fim à baía. A descida para a praia foi demorada, a água começa a secar nos nossos cantis e as pernas tropeçavam entre passos falsos dados em rochas soltas que deslizavam encosta abaixo.
Era novamente de noite, no fim do quinto dia na Colômbia, não mais sentíamos os mosquitos nem as picadas constantes no corpo, a água lamacenta sabia a néctar e a única fruta que comíamos eram um manjar de deuses. O frio chegava com a noite e as nossas roupas encharcadas em suor tornavam-se incómodas, precisávamos de aquecer, estávamos perdidos naquela baía deserta, no meio de nada. O Mário saiu com a Débora para recolherem paus e troncos que nos aguentassem uma fogueira, fiquei com a Emiliana e uma lanterna no centro do nosso pequeno acampamento rudemente montado.
Levavam algum tempo, havia pouco claridade e não sabíamos o que se escondia para lá daquela praia. Longos minutos depois, regressava o Mário para junto de nós, estranhámos vir sozinho. Perguntei-lhe pela Débora, ele não sabia dela. Tinha se afastado dela para mijar colado a uns arbustos quando a vira pela última vez, apanhado paus para um saco de plástico e seguindo na nossa direcção.
Não sabíamos da Débora, tinha vindo na direcção da praia mas nunca havia chegado de novo perto de nós. A nossa amiga estava desaparecida, ainda era prematuro, mas temíamos dezenas de coisas más que lhe pudessem acontecer. Procurámos a noite toda, nada, nem um sinal encontrámos do seu rasto. O céu estrelado clareava com o aproximar da manhã, a noite estava de partida e também nós teríamos de regressar ao acampamento.
Chegámos exaustos, perdemos o rasto dos nossos passos por diversas vezes e foi complicado retomar o caminho certo. Não tivemos tempo para descansar, o ambiente em redor das nossas tendas estava diferente, a sua disposição parecia ter sido alterada e as nossas coisas remexidas. Pousámos as pesadas mochilas de campismo na areia, reparei que a lona lateral da nossa tenda tinha sido rasgada, era um corte perfeito de cima a baixo. Os nossos sacos-cama estavam abertos e furados, alguém tinha forçado a entrada com uma faca, no entanto, o pouco que havíamos deixado dentro da tenda permanecia no seu interior apesar de destruído.
Foda-se! Que merda é esta? – gritava o pobre Mário.
Temia que fosse obra das milícias que patrulhavam a região e também tivessem levado a nossa amiga. O coração apertava, nenhum tesouro no mundo valeria uma perda tão grande nas nossas vidas. Ficámos desolados.
A Emiliana chorava, entrava e saia da tenda vezes sem conta, retornava a entrar e deitava-se sobre o amontoado de sacos-cama revirados. A sua impaciência deu frutos, a doce rapariga encostou a cabeça na pilha de tecidos e sentiu algo rijo debaixo da sua cabeça. Tememos que fosse um bicho, levantámos os sacos-cama com cuidado e deparámos com algo estranho mas que nos indicaria algo de novo. Era um bilhete escrito numa manga de camisola com uma faca espetada, algo que nos havia fugido da atenção momentos antes. Reconhecemos de imediato a peça de vestuário, era da nossa amiga Débora. Ficámos aterrorizados, não estávamos sozinhos.
Mário leu o que dizia, em voz alta...

Tenho a vossa amiga.
Desvenda o resto do mapa ou ela morre.
Estou de olho em ti, não me desiludas.

Patrícia xxx


Fiquei sem reacção, devo ter ficado pálido, completamente incrédulo. Desconfiei das milícias colombianos e traficantes de droga e no fim era a pessoa que menos imaginava, a minha velha conhecida Patrícia. Tinha cometido uma falha grave ao pedir-lhe ajuda para localizar a casa do Heitor em Tenerife. Sabia que ela não seria de confiança, já tantas provas me havia dado no passado, ficou entusiasmada com a possibilidade de eu realmente estar na pista correcta e quis ser ela a reclamar o trofeu. As cosias tinham chegado a um ponto critico, agora, mais que um estúpido tesouro, era a vida da minha amiga que estava em jogo.
Quem é esta Patrícia? – perguntava a Emiliana.
Tive de lhes contar toda a história, os detalhes eram tantos e tão complexos que era completamente dia quando terminei a minha versão, connosco ali sentados na tenda.
Porra, e tu conheces esta gaja?! – o Mário revoltava-se.
Era evidente o que a Patrícia queria, os nosso passos devem ter sido seguidos desde o momento que iniciámos a expedição, logo após o meu email para ela. A Débora era sua refém, servia como moeda de troca para o que pudéssemos encontrar no fim do caminho traçado, queria lhe fizéssemos o trabalho sujo e no fim aparecia para recolher o achado.
Desconhecia que mistério tão grande aquelas duas partes de mapa escondia, mas acabava de se tornar indispensável para a continuidade das nossas vidas. Com o nascer do dia, da baía, avistámos a Ilha que perseguíamos. Teríamos de alcançá-la, não possuíamos um barco, o percurso teria de ser feito a nado. O mar parecia calmo, deixámos a tenda e os mantimentos para trás naquela praia, levávamos as mochilas com pouco peso para que a travessia fosse possível de se realizar. Com sorte, depois de passarmos a forte rebentação das ondas, as correntes nos levassem na direcção desejada.
Lançámo-nos ao mar, mas assim não acontecia. Estávamos há mais de uma hora dentro de água, nadávamos como podíamos, lutando contra a maré mas a travessia parecia interminável. Começávamos a ficar com a garganta desidratada da muita água salgada que tínhamos involuntariamente engolido.
Quase sem forças, fizemos um esforço final e conseguimos apanhar a corrente que nos levaria de encontro à rebentação das ondas numa das praias daquela Ilha. Sentimos terra firme debaixo dos nossos pés, não nadávamos mais, éramos simplesmente arrastados a reboque pela vontade do mar. estávamos mortos de cansaço, os nossos corpos exaustos foram levados pelas ondas até à areia da praia. Não nos levantámos, ali ficámos caídos, jogados fora das suas águas pelo mar e adormecemos.
Acordávamos novamente numa terra que não era nossa, após tantos despertares em tão poucas horas sentia-me mentalmente perdido, deslocado do tempo e das horas. A primeira coisa que fizemos foi procurar comida, tínhamos o estômago completamente vazia desde a noite anterior e já era final de tarde do dia seguinte. Juntámos alguma fruta, preferimos não nos aventurar para além da praia, deixar a vegetação para mais tarde, quando decifrássemos o resto do mapa em papiro que carregávamos, tentando localizar-nos naquela Ilha. A notícia não foi agradável, pelo desenho do litoral e os penhascos que nos rodeavam, tínhamos sido arrastados pela corrente para a parte norte da Ilha, tal como indicava a bússola. Teríamos de chegar ao centro da mesma, passando pelos penhascos que circundavam a praia, seguindo o denso planalto e encontrando a cascata. As indicações acabavam ali, o nosso destino final não nos escaparia por muito.
Ainda estávamos cansados, a comida era pouco para tanta fome. Criámos um pequeno ponto de descanso, sem tenda ou sacos de cama, usámos folhas caídas de palmeira para nos abrir do frio da noite que chegava.
Emiliana acordou-me a meio dessa noite, não conseguia adormecer e pediu-me que fosse com ela dar uma volta pela praia. O Mário dormia profundamente, nem deu conta que nos tivéssemos levantado. Fomos vagueando pela praia, sem necessidade de lanternas, apenas iluminados pela Lua crescendo e o seu reflexo nas águas límpidas daquele paraíso.
Que se passa Emiliana? – perguntei.
Nada, apetecia-me passear, só isso.
Parei junto da beira mar para apreciar o plâncton brilhar na água, era lindo.
A bela rapariga parou a sua caminhada e cercou-se de mim.
João, achas que te ignoro? – perguntava ela.
Não...
Fez-se silencio nas nossas palavras, por momentos, esquecemos que a nossas últimas frases nunca tinham existo, não fazendo sentido naquele instante. A Lua continuava a brilhar no mar, o plâncton expelia as usas belas cores vivas e criava um espectáculo que nos entretinha.
O silêncio foi quebrado...
Mas tento. – acrescentava ela.
Não há razão para isso... – dizia eu.
Há, muita. Não consigo estar assim tão próxima de ti. – respondia ela imediatamente, encurtado o espaço entre os nossos corpos e agarrando-me com força na mão.
Olha, o mar está tão lindo.
Largou-me a mão e correu para dentro de água, segui os seus passos e mergulhámos vestidos. Quando regressámos à superfície, o plâncton afastava-se e criávamos o nosso próprio espectáculo. A troca de olhares levou aos beijos, estavam molhados, as caricias pelos corpos, as roupas que saiam coladas da nossa pele...
Acabámos na areia da praia, enrolados um no outro, fazendo amor e passando aquela noite juntos. Estávamos caídos, mortos de cansaço. A areia arrefecia com o entardecer da noite, a Lua continuava em cima no alto e as estrelas escutavam os nossos suspiros. Ali estavam dois amigos, abraçados, aquecendo os corpos numa noite fria.
O Mário acordou-nos na manhã seguinte, vagueei pela praia da noite anterior, completamente deserta. Aninhava os meus pés na areia, estava fria, escutava o mar a poucos passos de mim e avistava, por entre a neblina, o caminho que nos levaria a bom destino.
Seguimos a nossa sorte, depois de uma desgastaste escalada por um penhasco inclinado, chegámos ao vasto planalto mostrado no mapa, estávamos na direcção certa e sentíamos as esperanças de um bom desfecho aumentarem a cada passo decisivo que dávamos. Não podíamos acreditar no que tínhamos à nossa frente, todo o planalto estava transformado num longo e vasta plantação de coca. Poderíamos estar a ser observados, corremos na direcção da floresto o mais rápido que podemos.
O nosso destino glorioso era interrompido, rapidamente fomos cercados por um homem armado que nos obrigava a deitar imediatamente no chão, connosco ali tão próximo de entrarmos novamente na densidade da floresta. Era um traficante de droga e estávamos no seu campo de plantação de coca.
O velho Mário mostrava a sua mala ao mitra que nos cercava. O traficante ficou interessado no seu conteúdo, mexia e provava um dos sacos de coca que estavam na mala do nosso amigo. Seria aquela a nossa única hipótese de fuga, enquanto o Mário o distraía, levantei-me bruscamente e apanhei-lhe a arma. Não a conseguia sacar, estava presa em volta do seu braço e quase levava um tiro. A Emiliana apercebeu-se e deu com a sua mochila na cabeça do traficante, por pouco não me acertou também, o homem ficou algo combalido e caiu no chão depois de sentir novamente o peso da mochila sobre a sua cabeça.
Deixámos tudo para trás, malas e tudo mais. Os sacos de cocaína tinham dado os seus frutos. Tínhamos ganho algum tempo, não muito mas o suficiente. Escutávamos os disparos atrás de nós, não era apenas o outro homem correndo atrás de nós, as balas saiam de mais armas. Mais depressa chegávamos ao nosso local marcado, apenas temíamos que nos seguissem.
Sempre de mapa na mão e seguindo religiosamente os seus traços, estávamos próximo da cascata que nos mostraria o tesouro e desta vez seria também uma escapatória com vida. Apanhámos o curso do rio que descia das montanhas, os traficantes não mais disparavam os seus tiros de intimidação mas sabíamos que estariam por perto. Avistámos a longa queda de água, tivemos medo a principio, mas seria o salto mais importante das nossas vidas, um pouco a medo, recuámos. A Emiliana mostrou que levava aquilo a sério, despiu a camisola e deitou-a para os arbustos ao lado. Deu um passo na berma da encosta e saltou primeiro que nós naquelas águas agitadas. Veio à tona de água, chamou-nos para junto dela.
Saltámos, a queda era enorme e o impacto na água foi um pouco doloroso.
Caminhámos junto da queda de água, as rochas molhadas junto da encosta da cascata serviam-nos de trilho e descobrimos uma entrada na rocha. Estava escuro, tirámos as nossas lanternas de bolso, o único utensílio que sobrevivera a toda a expedição e iluminámos a gruta que se seguia àquela entrada molhada. As indicações do mapa acabam ali, dali para a frente estávamos por nossa conta.
Descemos a longa caverna que se escondia na cascata, não havia luz natural, seguíamos atentamente os passos que as nossas lanternas iluminavam. Páramos todos de caminhar, a gruta abria-se para uma câmara subterrânea. Era um local lindíssimo, não mais eram necessárias as lanternas acesas, no topo da câmara, e por entre o amontoado de rocha, estendia-se uma fenda para o exterior na qual a luz solar entrava. Deveria estar quase sobre nós, estávamos em início de tarde, os seus raios iluminavam o nosso tesouro. O interior da gruta fazia-nos relaxar e dar largas à imaginação, transportando-nos para uma história de aventuras e recheada de emoções fortes, tento apenas como limite a força da nossa imaginação. Tínhamos diante de nós o nosso tesouro, uma multidão de soldados de Xi’an feitos em terracota. Éramos senhores de um legado digno de um imperador chinês, mas teríamos de nos limitar a apreciá-lo dali, nunca o conseguiríamos transportar.

Interior da Gruta Contudo, nem tudo eram más noticias. Heitor tinha deixado algo mais no caminho para as estátuas, uma garrafa dentro de um cesto de barro aguardava quem fosse reclamar tais preciosidades. Abrimos a garrafa de rum, tinha mais de oitenta nos e deliciava o nosso espirito. Todos nos servimos, estávamos contentes, agora só nos faltaria recuperar o maior tesouro de todos, a nossa amiga Débora.

Ficámos radiantes, tão entretidos com o momento que viviamos, não mais nos lembrávamos da Patrícia e dos traficantes que nos persegiram. A nossa paz de espírito era abalada, sscutámos palmas de um dos topos da câmara, a poucos metros de nós. O nosso momento de magia era interrompido. Três pessoas aproximaram-se da claridade e deram-se a conhecer.
Bravo, bravo... – dizia uma das pessoas, era a Patrícia, batendo palmas.
Mas... Como nos seguiste até aqui a baixo? – perguntei, incrédulo.
Injectei-te um transmissor no braço quando dormias no comboio. – dizia a outra pessoa, mostrando-se completamente fora do escuro.
Ela tinha chegado até nós, seguindo os nosso passos. A Débora vinha com ela, estava de mãos amarradas atrás das costas e segurada pelo companheiro da Patrícia. Fiquei incrédulo, era aquele cromo que nunca falava e passou a viagem de comboio de Bogotá a Cali sem dizer mais que duas palavras. O Bruno pertencia à Agência, a sua viagem a bordo daquele vagão serviu para nos colocar um sinalizador enquanto dormiamos, cabrão.
O nosso momento a desfrutar a doce garrafa de rum tinha sido interrompido, mas agora chegava a vez do momento da Patrícia ser interrompido e de forma bem mais convincente. Os traficantes conseguiram descobrir-nos e atacavam agora a nossa posição. Eram quatro traficantes, abriam fogo sobre todos nós. Os consecutivos disparos de balas danificavam o tesouro e este desabava para as encostas da câmara que lhe serviu de esconderijo. Queríamos fugir dali, os traficantes envolviam-se numa troca acesa de tiros com a Patrícia e o Bruno, deixando-nos como que esquecidos entre as estátuas chinesas. Os mal preparados homens atacaram primeiro mas não iam resistindo à melhor preparação militar dos dois agentes especiais, caiu um deles, depois outro e agora sobravam apenas dois. Entraram em desespero, achando que as balas não lhes serviriam os propósitos, lançaram uma granada cada um contra a posição do Bruno, este conseguiu abrigar-se, mas foi projectado violentamente contra uma rocha e ficou a contorcer-se, gritando com cores. A estrutura da gruta tinha sido abalada, muitas das estátuas estavam completamente destruídas e uma parede da câmara subterrânea estava seriamente danificada. Ocorreu um pequeno desabamento e abre-se uma pequena fenda na rocha. Estávamos situados abaixo do nível do mar, se a imensa água no exterior proveniente da cascata entrasse o local ficaria inundado num curto instante.
A Débora tinha ficado abrigada, conseguia agora correr para junto de nós. Um dos traficantes viu a nossa amiga correr e aproximou-se de nós, cercando-nos e forçando uma luta. Estávamos cansados e feridos, as últimas forças que nos restavam eram gastas em pancada. A pequena abertura na rocha depressa se transformou numa fenda maior, criando um orifício para o exterior da câmara com a pressão da água sempre a aumentar e a querer romper por aquele recanto a dentro. O local começou a inundar, a água ia correndo com algum volume pela fenda na rocha, aquela gigante fortuna e página de história seria perdida para sempre.
A Patrícia conseguiu despachar um dos traficantes, o outro lutava comigo. Não estava a dar conta do assunto, com todos os outros feridos, não poderia baixar os braços, mas a mulher agente aproximou-se por trás e torceu-lhe o pescoço.
Patrícia não perdeu mais tempo comigo, correu para junto do seu companheiro. Tínhamos levado com pedaços de argila das estátuas desmoronadas, estávamos manchados de sangue por todo o corpo e tivemos de correr para a saída da gruta, de regresso à cascata, senão teríamos a mesma sorte que aquelas estátuas.
Patrícia não conseguia arrastar o Bruno dos escombros, estava cansada e ferida num dos braços. Sentiu-se pela primeira vez sozinha e sem o controlo da situação, no seu jeito arrogante, pediu-me ajuda e disse que nos tirava daquela Ilha a salvo. Algo me fez não acreditar nela, mas não ficaria ninguém para trás. O outro agente tinha uma fractura exposta na perna direita, não iria longe sem a nossa ajuda. Transportámos o seu companheiro para fora daquela gruta e atravessámos todos o campo de coca carregando aquele tipo. A descida para a praia foi complicada, o terreno era inclinado e repleto de rochas pontiagudas. Foi doloroso ver a sua cara de sofrimento sempre que tombava numa pedra mais saliente.
Seguimos o trajecto que tínhamos tomado na chegada à Ilha. Seguindo as indicações da Patrícia, destapámos uma lancha rápida escondida na praia, coberta pelas mesmas folhas de palmeira que tínhamos usado para passar a noite. Empurrámos o barco de volta ao mar, entrámos todos nele e saímos por mar daquela Ilha. Não seguíamos para a enseada de onde nos tínhamos feito ao mar e nadado até àquela Ilha, íamos na direcção oposta, para pleno mar alto.
Hora depois sempre a acelerar na potente lancha, os gritos do Bruno tinham cessado, tinha desmaiado pelas fortes dores que sentia. Estávamos novamente com a costa à vista e ancorado perto de uma baía estava um enorme cruzeiro turístico. Estávamos de volta à civilizações, fosse aquilo que fosse. Patrícia parou o barco na proximidade do casco do enorme navio, algumas pessoas aperceberam-se que nos estávamos a aproximar e vinham ao convés espreitar o que fazíamos. Acenávamos na sua direcção, algo cai no mar, algumas das pessoas que nos acenavam, gritavam agora e chamavam por alguém. Foi tarde quando me apercebi do que se tinha passado, Patrícia estava de arma em punho e a pobre Emiliana lançada ao mar. Apontou-me a arma e ordenou-nos que saltássemos todos borda fora ou a nossa amiga ficaria ali sozinha.
Não havia tempo para medir forças, fizemos o que nos mandou e ela seguiu a toda a velocidade, levando o Bruno consigo, para bem longe dali, perdendo-se no horizonte.
Fomos recolhidos pela tripulação do cruzeiro. Passámos aquela noite no hospital do navio, nada mais sentíamos, estávamos anestesiados e todos a salvo. O perigo tinha ficado lá fora.